rodoviária
escondida atrás de um vidro estilhaçado em
nossa alma, observei-te com um olho
às lágrimas e outro sorrindo.
calculei seus passos antes mesmo
de eles soarem
deixei o medo inexistir
congelada num instante, insurgindo
                                                (quase como uma fênix)

o dia era todo laranja e
em segundos minguou para
tons cinzentos extremos
tão rapidamente que soa
         esdrúxulo
                  (e talvez seja mesmo)
a viagem é longa,
e, as pausas, mais ainda
o vento frio da serra carregará meus beijos,
mas minhas palavras sucumbirão
e no fundo, não há
problema algum nisso.





fiquei, talvez, mais tempo
do que deveria
encarando o lugar onde
meu cheiro preferido misturou-se com
o vento
numa agridoçura que chegava a
                      doer




mas quando, finalmente
levantei os olhos
(um às lagrimas, outro sorrindo)
e segui na direção oposta
uma poesia transitória,
quiçá transcendente,
que eu julgava estar perdida
dançou em frente aos meus olhos
tão brilhante que chegaria a cegar



                                      se não fosse você
reza destinada a quaisquer deuses
eu quero fazer com seus olhos
uma
pro           cis            são
de palavras. e entre as rimas tão
tão tão tão falhas e fracas
eu encheria a página com
o zzzumbido do meu
                              [corpo
já que tudo que é vivo
                               [zzzumbe...
e apertaria a letra para que na tela papel
e na tele-vida coubesse
o branco dos seus olhos
azuis.

e lá, nadando acá naquelas lágrimas
contidas,
feitas de tristeza que ainda
virão (ah, doce,
elas
        [sempre vêm),
poderíamos evaporar em
cândidas nebulosas,
e aí, seríamos, ao menos
      poesia.

nesses sonhos que escrevo,
de seus olhos de caneta
(com seus olhos como caneta)
consigo me ver fortemente
tatuada           ou           costurada
na vida.
e as agulha(da)s não me perturbariam

mais
que a própria idéia
de minha
etern
idade. 
números ímpares
por que eu haveria de querer mais um cigarro
quando já fumei dezessete e o maço
faz barulho se eu chacoalhar,
de tão vazio?
números ímpares dão azar
(responde-me o isqueiro
enquanto flutua até minha boca
que, sem permissão, carrega o número dezoito)

eu inspiro a fumaça para segurar algo
com um abraço áspero e frio
meus olhos parecem não ter órbita nem forma
através do que eles veem
através da névoa
me deixo envolver para ser mistério
decerto há de haver diversão em enigmas.

a sombra proveniente da vela
já mudou de 45 para 60 para 180 graus
e eu ainda não decidi
se vale a pena ou não levantar da cama
e abolir sua vida com um sopro
a sentença paira em meus lábios
que se entretêm, entretanto
em parir fumaça.

não é possível casar-se com a loucura!
(e quem haveria de a querer, de branco,
imaculada, virgem, cristã?)
ela rodopia entre os dedos
e, provocante, se instala na caneta
que escreve tais versos

não são obra minha ― o poema e os olhos
não os quero tampouco ― os olhos e as sombras
mas não posso negar-lhes agradecimento
pois o vestido que visto
foi feito com suas linhas:
essas cicatrizes nada mais são
que buracos de agulha
por onde eles
resolveram
sair

quem dera eu pudesse
sair também.
quem dera eu pudesse
ser também.
quem dera eu pudesse
parar de olhar para o teto como se não
o conhecesse
(também).

“de novo, minha flor?”
tu me perguntas (ou talvez tenha sido o isqueiro)
mas não faz sentido porque tu
não os sentes como eu
não vês os ratos nem a L. nem
os sorrisos do velho
como poderia tu, amor, tu
saber se eles alguma vez deixaram meu corpo?
(deve ter sido o isqueiro)

os sorrisos amarelos
não denunciam menos que os olhos vazios
mas são bem mais convenientes
de modo que, se voltares a me perguntar
se ando tendo aquelas ideias
“horríveis”
novamente,
apenas lhe darei um deles
dizendo que aprendi a amar a vida

mas, querido, o que é amor?
e, porra, o que é vida?

por que eu haveria de querer mais um dia
no mundo, quando o meu corpo já não sustenta
meus seios inchados de tanto sentir?
por quê?, pergunta-me o calendário
porque eu tenho dezessete e números
ímpares dão azar, eu respondo
e ele sorri sua ironia e me mostra
que amanhã
é dia
cinco.
Uma coleção de imagens sobre imagens sobre um cômodo nº2
uma cama por arrumar:
lençóis revirados sem lógica ou brilho
embora o quarto cheire todo a cigarro
o travesseiro exala canela sal e
xampu
é incrível a facilidade com que
os aromas se separam
como se já soubessem quando não
pertencem
um ao outro.

dois instrumentos
(provavelmente um baixo e
uma guitarra ou uma guitarra
e um violão) devidamente protegidos
mantém-se de pé te forma tão
desajeitada
que podem estar intocados naquele canto
há um minuto ou há quatro
anos

o tempo não existe
a não ser para as pessoas...
uma foto não envelhece
uma imagem não envelhece
uma guitarra (ou um baixo ou um violão)
nunca reclamariam da demora
os livrinhos de citação em cima da mesa
de madeira
não sabem que horas são e quantos
anos eles
têm
(ou tiveram)

dizem que o movimento cria
a vida
da inação, entretanto, vem a poesia
quando um tictac ecoa, ela se quebra
desaparece em flashbacks roxos
e nunca mais é vista
(não essa, pelo menos)

tento torcer uma corda,
às vezes.
para me ligar de um
lugar ao outro, do que eu fiz
e esqueci e do que não fiz mas não esqueço
tento gravar nos fios, em códigos extravagantes
as palavras que poderiam mudar
o sentido de
tudo.
mas sendo a memória tão efêmera
e frágil como grão de poeira,
esqueço como se
lê o que
eu mesma escrevi.

em uma daquelas gavetas
ou nas milhares de pequenas pilhas
de livros que empesteiam a mesa,
há de haver uma carta.
haverá também um cartão postal
um autógrafo um lápis um clipe
tudo perdido na atmosfera gelada
da inconsciência.
intocados, despertam minha inveja
uma inveja pontuda de
quem não consegue ser, nem
por um momento,
parada e silenciosa

quiçá a carta seja uma conta
de cartão de crédito esquecida
o cartão postal, de São Paulo
e o autógrafo contenha a caligrafia do
Paulo Coelho
sem saberem o que são, têm uma calma
tão mais luxuosa que
a minha (que também não sei)

eu poderia abrir o guarda-roupa branco
e descobrir observando as roupas
a idade aproximada, sexo e gosto
em
moda
de quem possui esse quarto

prefiro não fazê-lo
e deixar que a curiosidade
não seja assassinada pela
monotonia do saber
dessa vez.
há beleza, também
em flores sem nome

embora eu não possa deixar
de notar que no vaso que se
ergue disfarçadamente
do meio dos livros,
quem libera o sutil cheiro
(quase apagado pelo de tabaco)
seja
definitivamente
uma camélia.
RE:
não há título porque o assunto é inconfessável. se você não arrancar o selo modernizado desse bilhete, então nunca mais falarei nisso. mas, agora, oh senhor, agora, tosse em minha garganta sensível uma agonia que precisa ser transformada em grito; para minha própria sobrevivência. é disso que eu falo, vê? ao escrever-te, coloco as vírgulas em seus devidos lugares, evito gerúndios, controlo supostos espasmos gramaticais e, antes de sequer perceber, usei até um ponto-e-vírgula. me preocupo com o seu entender, e isso consequentemente significa deixar de lado um pouco da minha visão individual, da minha confusão inerente. não há um eu e um você, em seu lugar há um pronome um tanto pomposo mas incrivelmente mais pesado: nós.

sei que vou reler estas palavras mais vezes que o necessário, porque, sendo franca, são palavras que preparo para você, são mais suas do que minhas. tenho inclusive que fazer pausas como quem consulta o dicionário algumas vezes, e, no meu íntimo, estou cansada de procurar tamanha precisão metalinguística. parecem freios, vê? e, de certa forma, são rédeas que não representam somente a mim, mas a você também.

quero desnudar-me, e deus sabe que posso ser desinibida. mas, para tal fim, minhas próprias mãos devem tatear meu corpo disforme, e não as tuas. essa obsessão por me definir geometricamente soa e decerto é incompreensível. e justamente por eu não entendê-la tampouco, ela parece tão urgente. mas que estúpido é o ser humano! não se contenta com a paz quieta e aconchegante da ignorância, essa bênção tão subestimada, e se contrai só de pensar em mesmice... a doença de nossa espécie decerto é essa vontade inquietante de entender, humanizar, definir e dominar tudo ao seu redor; aniquilar qualquer possível dúvida, e, assim que o fizer, correr atrás do próximo mistério inexplicável.

eu, como boa e comum humana, tenho também essa sede tão tola. e, como comum e minúsculo humano que sou, escolhi incontinentemente a pergunta mais insignificante para tentar responder: o famoso e insustentável "quem sou eu?".

que diferença faz, meu deus, eu saber exatamente quais adjetivos me definem? do que vale me internar em quarenta por inúmeras noites apenas para que eu seja previsível para mim mesma? qual a utilidade de me tornar entediante? por que não me enfiar nesse ninho que a vida me oferece com tanta graça, por que não me permitir cair nos seus braços e simplesmente inspirar-e-expirar, com a mente num tom tão agradável de branco? qualquer um há de concordar que é o inteligente a se fazer. não há motivos para procurar motivos, sejam quais forem: é a busca mais infiel existente.

a inércia é tão bela, o conforto é tão quente, a rotina é tão singular! é a eles que deveríamos nos entregar, não à desesperada necessidade de inovação. para que essa imensa arrogância de querer ser individual? não o somos, nunca fomos e morreremos antes de ser. não há sentido algum em não se entregar ao nada apenas vagar por aí até não poder mais, e então deitar no chão, se tornar translúcido, transparente e por fim branco. eu sei, meu amor, que essa coloração é a mais desesperadora de todas, mas também imagino que não deve ser por acaso que ela representa a paz.

não digo de forma alguma que desejo a ausência de movimento, pois isso pressupõe rigidez, e é utopia achar que de tal forma não enlouqueceríamos. mas condeno a pressa, porque não há urgência em chegar ao fim. o tempo descolore-nos conforme seu balanço, e, se há alguma coisa nos esperando através do véu, uma hora ou outra nós a contemplaremos.

digo tudo isso para justificar e tentar amordaçar minhas inquietudes e inseguranças, e me desculpar comigo mesma por ser tão insatisfeita. achei um colchão macio o suficiente para descansar, e mesmo assim quando me deito às vezes tenho sonhos com outras pessoas. é em tua cama que quero estar, sei disso como sei que tenho fome: é instintivo. mas, por capricho, às vezes tenho vontade de sair do quarto no meio da noite e me encarar no espelho até os primeiros raios de sol. em noites tais, você chama-me da cama - posso te ver, agora, ao ler esse desabafo, com meu nome a dar-te cambalhotas pelo céu da boca - e pergunta se ando insone, digo apenas que você ocupa espaço demais no colchão. você resmunga e volta a dormir. passo o resto da madrugada olhando para mim mesma assustada e agarrando minhas coxas, pernas e tornozelos com um medo estúpido que eu estivesse evaporando.

o banheiro da sua casa sempre foi pequeno demais, odeio o fato de você nunca chamar alguém para consertar a maldita água quente da pia. e me sinto escrota, escrotíssima mesmo, por nunca ter comentado essas e outras milhares de coisas que passam pela minha cabeça enquanto você dorme e eu tento não sumir. sinto que estou falhando comigo mesma ao deixar que sua substância seja mais forte em mim que mim mesma.

então, chegando ao ponto: eu resolvi te deixar.

digo isso sem certeza de que você vai ler, mas não faz diferença nenhuma: você nunca vai saber que eu te larguei. provavelmente continuaremos indo ao mesmo restaurante japonês capenga aos sábados e você vai permanecer insistindo em comer bolo de cenoura mesmo odiando  o sabor, só porque fui eu que fiz. mesmo assim, não estaremos mais juntos, ou, pelo menos, eu não estarei com você. um dia, eventualmente, provavelmente ano que vem ou no próximo, nosso namoro vai terminar e eu vou embora. você vai chorar. vai achar que errou em algum lugar e me pedir milhões de chances. amor, você não vai ter nem ideia que eu não seria mais sua há tempos (a partir do momento que lhe enviar essa mensagem).

você é como uma esmeralda bonita, brilhante, enorme. e, ao seu lado, minha qualidade de bijuteria de miçanga se perde. no nosso "nós", sou só um detalhe, o acento no "ó", enquanto as letras e as fonéticas são inteiramente você. não é submissão e tampouco autoestima baixa, é mais como uma reação química: eu sou o precipitado e, pelo amor de deus, estou cansada de estar sempre no fundo. isso não significa que vou te trair. não o farei, porque ao deixar-te continuarei dormindo com você e na mesma cama que você. entretanto, essa minha vontade de ser fiel tem um outro lado: preciso ser fiel a mim e não posso fazer isso sendo sua. você não tem culpa. 

assim como como amantes virtuais afirmam que "não é necessário estar perto para estar junto", acredito que a recíproca é verdadeira. continuarei sendo sua namorada, afinal, não é de todo ruim estar ao seu lado, apenas não farei mais parte de um pronome no plural, ainda mais esse meu e seu que é tão fraco e ilusório. eu não estou pedindo "um tempo" porque não preciso de tempo, estou decidida. também não termino o relacionamento abruptamente aqui pois não há necessidade de fazê-lo: como eu disse, você provavelmente nem notará a diferença. mas, pra mim, é uma questão de princípios e um problema que precisa ser resolvido imediatamente.

sem mais demora, então, deixo-te agora.

provavelmente eu não deveria dizer-te tudo isso, você não vai entender e eu também não acho que é necessário que você saiba. mas o Gato ainda não acordou e estava me sentindo sozinha, então espalhei minha solidão como um colchão numa piscina e boiei apoiada nele por alguns minutos enquanto vomitava todas essas bobeiras por aqui.  sinto-me melhor agora que tirei todos esses pensamentos de dentro do meu estômago. sendo que já escrevi, envio-te, porque senão seria tempo perdido. e você sabe que eu não gosto de perder tempo.

bj,
N.


ps: se você abrir esse e-mail ainda hoje no trabalho, por favor, passe no McDonalds e compre alguma coisa pra gente comer. acabou o gás hoje e eu tô morrendo de fome.
Hoje a noite não tem rima à noite
o orvalho que escorre da rosa como lágrima
não é suficiente para suprir minha sede
de beleza.
uma única gota de maciez
não fará diferença alguma numa vida de acasos escassos
e destinos quebrados
todo dia parece domingo
e isso seria bom se não fossem todos
quintas-feiras.

se houvesse tempo de ver a lua
eu a beijaria como um amante inevitável
a fuga que proponho nas entrelinhas
talvez tivesse como destino suas crateras de queijo
que se parecem  tanto com os buracos
que enfraquecem meu sorriso
estático

mas eu digo não, amor, eu grito não
pois ao gritar me sinto mais válida
ao gritar não me sinto presa
ao gritar ignoro os dias ruins
ao gritar, grito
e o grito que grito ecoa o meu gritar
como nenhum berro jamais faria.

quero dormir o dia e viver ao dia
pois a noite já não é mais
familiar e amigável como uma vez
prometeu ser.
a escuridão
(caso não tenha notado)
nada mais é que o descanso da luz
e, como tal, não merece ser aproveitada
em saídas etílicas e elitistas.

faz três dias desde que fumei um cigarro
dois meses desde da última vez que me embriaguei
há mais de um ano eu não me machuco.

a última vez que estive machucada, não me lembro
pois a dor é essa certeza frequente e afiada
que nos envolve como um manto azulado
e nos empurra na direção contrária a ela
[caminho que talvez não conhecêssemos
[se não tivéssemos sentido
[seu toque frio de bisturi

estou tão acostumada a essa transição diária
de 24 horas e alguns minutos
que já me habituei a o sol surgir e desaparecer sem cumprimentar-me
mesmo assim
ainda acho enigmático
quando raios de luz adentram
raivosos
pelas frestas minúsculas da minha persiana
tão docemente s(c)elada

de qualquer forma,
antes de conseguir sorrir sobre isso,

volto a dormir.
De uma noite sem estrelas e sem luar
se eu ao menos tivesse cabelos mais longos, me trançaria ao seu redor e orbitaria em ti feito satélite. mas meus fios são quebradiços, amor, e a  realidade gravitacional interfere em meus planos. ser sistema solar nunca foi o meu forte! as minhas rotas são tão bruscas que tenho medo de virar meteoro e acabar com seus dinossauros, sabe? essas coisas grandiosas me apavoram, assim como você também o faz. ainda não medi minha força de cometa, não sei ser estrela cadente tampouco. de noite, te acolho como um manto quente de grama ou um sopro frio de silêncio. mas se você olhar bem pro alto, vai me achar valsando por aí.

talvez nem valsa seja. esse tango americano é tudo que eu tenho a oferecer. não chega a ser samba, não tem gosto de salsa: meu pão de açúcar está sem cobertura, e o rio de janeiro não é mais tão lindo. a confeitaria eu fiz em casa, a pizza queimou um pouco, perdi meu relógio, mas ainda tenho tempo. compro um cuco se você quiser, em estilo europeu, e nunca mais esqueço se é meia-noite. ainda embrulho o danado em papel prateado, escondo lá fora se você quiser ficar na cama até mais tarde. deixo ele dormir no próprio ninho, como o pássaro que deveríamos ser.

ou então deito em seu peito e derramo e transbordo e soluço minha poesia gélida. juro que não te molho! vou ter papel pra secar. é só porque nadar em mim mesma com você como jangada é mais seguro. me dá vontade de criar um Titanic e desaguar num labirinto d'água, meu amor. te mostrar meu mar azul. sei que é exagero:  às vezes chove no litoral, os meteorologistas vivem alertando. se não houver terra a vista, senta e joga truco, docinho, eu não sei as regras mas prometo interpretar. te leio o jornal de domingo. não é motivo de rebuliço, porque hoje já é quarta e o caderno de esportes embolorou. mas a vida em auto-mar é cheia de tormentas, certo? quem não vai até o fim, não dança com os golfinhos.

se a boia não furar, a gente não se afoga. se a galáxia não chacoalhar, minha elipse a sua volta continuará perfeita. os dinossauros a gente preserva em fósseis. e iceberg, meu amor? a gente derrete. vira o timão para o outro lado. foge, pensa, grita. mas bater? bater está fora de questão. a maresia não deixa. o seu tsunami não deixa. o Cruzeiro do Sul puxa a gente feito ímã para longe.

e no céu, ah amor, no céu a gente deve sempre confiar.

Da beleza de inexplicar o explicável.
Fazia uns dias que eu tinha adquirido essa mania de respirar bem fundo. Como se fosse para me livrar das impurezas que ronronam nos meus brônquios. Expulsá-las e colocar em seu lugar os gases nojentos que empesteiam essa cidade que eu tanto amo. Não sei por que, eu devo achar que eles são mais dignos (e eu digo “devo achar” porque não sei se acho, ou tenho certeza que acho mas também tenho outras convicções contraditórias na minha mente metalinguística e matemática. não é só força de expressão). Eu deixei também os suplícios desesperados recheados de ausência de orgulho para trás, mas peço, leitor, que acredite que estou confusa.

E o vocativo “leitor” também me é estranho. Antes, apesar de tudo, acho que eu escrevia para mim, porque eu tinha algo a dizer em que eu precisava acreditar. Mas nesse momento, apesar de ainda existirem palavras que rodam em algum gira-gira imaginário e mergulham em seus próprios corpos dentro do meu organismo, eu não tento (simplesmente porque não preciso) arrancá-las urgentemente de dentro de mim para poder vê-las e senti-las nas pontas do meu cabelo curtinho. Não sei mais redijo essas letras para autoconhecimento ou para simples ostentação.

Se for por ufania, é uma que eu não conhecia antes: de um tipo sutil.

É engraçado. Não quero soar como um charlatão velho fumando charutos, mas a gente não sabe de nada. Nem sobre nós mesmos. Não quero soar como um breve livro de autoajuda que custa 45 reais e não tem conteúdo algum, mas sim, eu não me conheço e foda-se, porque eu não me importo e essa indiferença não é amarga e sim cotidiana. Eu ando descobrindo tantas coisas que eu julgava minúsculas ou até mesmo inexistentes e é isso que me confunde. O tempo. A inércia. A mudança (mas não a vida).

O problema também é que minha mente se embaralha tanto com essas novas filosofias e métodos que eu não sei muito bem por que caminho eu devo seguir. Por um lado aquilo que sempre me foi certo continua bastante sólido, mas existem tantas outras coisas que pulam à minha visão... Não, eu não quero desmerecer a poesia. Mas é preciso saber ver beleza numa equação matemática também.

Analisar a mim mesma tem sido diferente, também. Como se eu preenchesse um gabarito de um teste sem me preocupar muito com o resultado. Quando se preocupa em acertar, as alternativas se limitam. Quando não, existem A, B, C, D, e E possibilidades e todas eles merecem ser observadas com a mesma atenção e carinho. A vida não é um vestibular e acertar muitos pontos nela nunca foi sinônimo de sucesso.

Talvez eu querer me livrar das minhas impurezas respirando fundo seja uma busca por melhora. Talvez seja a falta de autoconfiança que me faz pensar que até a poluição da cidade é melhor que os restos da minha alma. Talvez a explicação seja meramente biológica e não queira me livrar de nada: eu simplesmente deva parar de fumar.

Eu não sei. E aprendi não só a viver com essa incerteza, mas também a amá-la.
Migrando à primavera.
Vamos provar, amor, definitivamente,
que essa certeza deles é errada pra gente
Eu sei, uma andorinha não muda o inverno
Mas que sentido faz se doar ao inferno?

A nossa sentença jaz em buscar refresco
Em aventuras vagas, mas que pitoresco!
Já não nos é claro aonde levam esses trilhos?
É melhor nos tornarmos pardais andarilhos.

Vai ser magnífico morar no orvalho!
E pode ser que o céu pareça solitário
Longo, distante; tão inalcançável, em suma
Mas duas aves voam melhor do que uma...

Pode ser que deixemos cair no caminho 

Alguns fragmentos do nosso velho ninho.
Não é difícil construir casa melhor
Ainda mais com tantos galhos ao redor

E se não der certo, vamos pra quarentena
E cantaremos canções que valham a pena
Olharemos de soslaio o imenso mar
E um dia, sobre ele, nos verão voar.
Inverno astral. 
Se você olhar bem, acho que verá que meu apreço por você é maior que os outros sentimentos aglomerados que se costuma embrulhar e estender para alguém como um presente de aniversário. E eu nunca entendi muito bem como é que, cada vez que eu mergulho naquela velha cachoeira de águas mais fundas do que as pedras sugerem, eu vejo um peixe diferente. Acho que esse cardume de ilusões que eu construí ganhou vida própria. Ele se desfaz a cada vez que tento acertar o peixe grande com uma lança. E é engraçado, é como ser Dr. Frankenstein ou um tubarão, aterrorizada e aterrorizante. Esses preconceitos são como gangorras, e arrancar tudo de um dos lados desequilibraria meus biomas talvez de forma drástica.

O que eu digo, amor, é que à medida que esse castelo que ergui é assombrado, a floresta que o rodeia é igualmente agourenta, e portanto é só uma questão de escolher por o que cair. E então eu prefiro não morrer na praia.

Isso é só uma introdução para uma canção meio torta que tento compor, como um prelúdio. Dizem-me para apertar o pedal e deixar o som invadir a sala como um guerreiro medieval, mas eu prefiro igualar minha possível composição a algo mais natural, como uma música que sai do rádio. Não quero dizer com isso que minha busca tem a genialidade ou banalidade do que é digno de venda, mas sim que minha ambição é me encontrar numa simplicidade meio decadente, meio flutuante. É quase metalinguístico, entretanto, fazer uma apresentação tão longa e não lhe mostrar ao menos um si ou um lá.

Como eu dizia, cada vez que eu tento fotografar o que é tão bonito sobre seu cabelo encaracolado que você insiste que é muito comprido - já que isso diz mais a respeito de mim do que de você -, o flash dispara ou o Sol se esconde nas nuvens ou começa a chover e o retrato sai inesperado. Embora, como tudo além das expectativas, as surpresas possam ser agradáveis, o que mais pesa é minha frustração de não conseguir enquadrar meus sentimentos, personalidade e intenções.

Para quem sempre se considerou uma artista, isso é quase um escárnio.

De dia meus lábios se contorcem e tenho que molhá-los sozinha. A manhã se arrasta, uma, duas, três horas; cinco, sete, dezoito minutos a mais. A natureza provoca, e eu revido com uma mordida, apesar de a única prejudicada com isso ser eu mesma. O dia é matemático, e eu jorro biologia da minha boca e nariz. Essa ânsia de sangrar só para romper o tédio talvez não invada todos meus átomos, mas de certa forma ela ainda não é ausente. Deve ser por isso que eu traio sua confiança para me entregar a um batimento acelerado e a uma cédula alaranjada. Ou talvez eu só queria me divertir, docinho, e por não saber o que isso supõe, me entregue mais a você do que à Terra, e mais à Terra do que a mim.

Essas minhas pernas curtas se assemelham às da mentira, e acredito que ela se pareceria comigo, se esse holograma fosse projetável. Não é que eu minta, é que meu cabelo continua esvoaçante e meu rosto ainda é redondo; e, se eu me mantenho sólida depois de tanta dança de salão e sapateado no estômago, me parece errado receber outro nome e outra ficha. Suponho que o corpo e a mente não sigam tão sintonizados quanto é dito, e eu quero ser uniforme até em relação a nuances tão incompatíveis.

Eu não estou acostumada a poder me render a esses prazeres instantâneos e acabo tropeçando nos nossos cadarços e derrubando não só eu e você, mas também mais meia dúzia de pessoas. Minha boca anda muito mais seca do que é saudável, e isso ser a coisa que mais me preocupa é assustador. O pior sintoma é tão insignificante e eu ainda tenho em estoque receitas, comprimidos e vacinas empoeirando na despensa. Não é o desperdício de tais medicamentos que é brutal, e sim a singularidade bruxuleante que ele carrega.

O essencial não é invisível aos olhos, ele apenas está muito bem escondido nas entrelinhas do que se vê.

Ou talvez seja nisso que eu me force a acreditar.
Terceiro Andar. 
Antes que eu termine a bituca do meu cigarro
Digo alguma frase de Vinícius de Moraes.
Talvez eu seja para ti fe(t)ia como o barro
Mas posso perfumar, com flores, onde tu vais.

Por favor, checa se eu ainda estou naquela janela.
Já que sempre teves ― tive ― medo de eu cair
Vê pra mim, também, se meu quarto ainda cheira a citronela.
Joguei fora alguns azares - diz que não vais rir.

E não escolhe meu telefone na tua vã lista
Pelo menos não nessa chuvosa quarta-feira
Ah, espera na porta, querido, até que eu me vista!
Te mostro o penhasco - mas vamos só até a beira.

Não te martiriza e pergunta se é ou não correto
De um cais há de se voltar a algum porto
Tu floresces em meu sangue e útero como um feto
Porém não te assusta, meu doce, que é natimorto.
Vestibulanda nº 37, sala 0063, terceiro andar.
Vez ou outra eu me arriscava a olhar pra trás. Eu já tinha terminado mesmo, até havia arrumado os papéis numa ordem fácil, pra sair logo dali: os que entregaria, por cima, e depois o que eu ia levar pra casa a fim de ver como é que eu tinha ido. Então eu observava as meninas da sala, todas com o mesmo nome (quantas Carolinas tinham se inscrito pra prova, meu Deus?), todas com o mesmo propósito. Todas concentradas, nervosas, revisando, escrevendo, rabiscando, com medo de perpetuar as respostas à caneta preta ou azul na folha laranja.

É por isso que eu achava tão engraçado o fato de ela ter tirado o tênis ― All Star preto, veja que clichê ― e deixado suas meias com gatinhos à mostra, pra todo mundo ver. Eu achava cômico porque era um contraste tão grande com aquele ambiente quieto e tenso, e até mesmo com a boca dela, retorcida e mordendo a ponta da lapiseira. Aliás, por que é que ela escrevia com lapiseira e não com lápis-grafite-preto-número-dois?

De qualquer forma, eu contei qual era o número dela. Quarta fileira, sétimo lugar. 37. Talvez eu pudesse olhar o nome dela na folha na entrada da sala depois, quem sabe dizer um “oi” ou coisa assim. Ou sei lá por que. Tédio, eu acho. Demorava tanto, mas tanto para que apagassem aquele “17” torto da lousa, que eu nem sabia se o que estava errado era minha percepção de tempo ou o relógio dos inspetores da sala.

Depois lembrei que eu não precisava olhar o nome dela ― era Carolina. Que nem o meu, que nem o da número 15, que nem o de todo mundo naquela mesma sala. Acho que eu nunca estive num lugar com mais de 70 Carolinas. Ou mais de 70 meninas, todas adolescentes, florescendo aqueles perfumes de chocolate, amadeirados, cítricos ou mesmo o cheiro de algodão dos desodorantes. Poderia ser inebriante, se eu não tivesse 90 questões para responder. Mas agora que ainda faltava uma hora (uma? Sei lá, não apagavam os malditos horários da lousa! por que a merda da sala não tinha um relógio?) e eu não tinha nem 90 e nem paciência pra revistar as 90, até que dava tempo de reparar na menina número 37. O cabelo dela era vinho, ela tinha uma face tão harmônica, e, porra, usar meias de gatinhos com uma blusa de moletom do Nirvana era engraçado o suficiente para eu ficar fascinada.

Tudo bem que eu só percebi isso na quarta olhada rápida ― eu não podia fixar o olhar, ia parecer suspeito ― então alguma coisa antes deveria ter chamado minha atenção. Não era porque ela era a mais bonita da sala (porque essa era a número 14, bem do meu lado). Aliás, não tinha nada, absolutamente nada nela ― exceto a combinação Nirvana-meias-de-gato ―que fosse digno de se prestar atenção. E talvez fosse justamente isso: ela não se esforçava para aparentar alguma peculiaridade. Por exemplo, a 31 tinha colocado um cachecol extravagante, a 19 foi com uma blusa com o nome do cursinho com um “X” bem grande, e embaixo escreveu com canetinha: “cursinho nunca mais”. Mas a menina das meias de gato era só a Carolina número 37. Ela não queria ser mais que um número. Ela não estava ali para isso. E talvez nunca estivesse em lugar nenhum para isso.

Teve um momento em que eu fiquei encarando-a um tempão. Estava tão mergulhada nisso que quase não percebi a fiscal ― com um “Carolina” estampado no crachá, mas que ironia ― chegar e me perguntar se eu já tinha terminado a prova. Eu disse que sim. Ela: “mas só pode sair depois das 18h”. Grande coisa, Inspetora Carolina. Como se eu não soubesse. Enfim, nesse tempo todo em que eu fiquei olhando vidrada pra ela, ela nem levantou os olhos da prova. Nem parou de mexer no cabelo ou morder a lapiseira. Acho que ela nem sequer piscou.

Decidi olhar um pouco a número 14, só pra variar. Ela já havia terminado a prova. E, ainda pior, percebi que ela estava de batom. O cabelo preto e curto era tão bonito contra o batom rosa-avermelhado que me deu nojo. Porque agora ela não era só a número 14. Era a Batom Rosa Escuro Quase Vermelho. E, não sei por que, mas naquele momento eu preferia só números.

Talvez eu estivesse carente demais. Talvez fosse minha auto-estima baixa que me fazia procurar beleza nas coisas e pessoas aparentemente sem graça. Ou, talvez, repeti pra mim mesma, fosse só tédio. Mas o problema era que tédio não explicava o porquê de eu ter escolhido a 37 para ser meu alvo de especulações e olhares furtivos. Eu a comia tanto com os olhos, eu tentava com tanta força decifrar o motivo daquelas meias de gatinho, mas eu não conseguia nem ao menos entender por que tinha sido ela.

Deram 18 horas. Graças a Deus.

Mas eu me peguei olhando para prova por pelo menos mais uns dois minutos, só para ver se ela entregava o caderno de questões e a gente podia descer juntas para o térreo. Mas aí fiquei de saco cheio e entreguei logo os papéis. Saí da sala e fiquei um tempão olhando pro nada, sem saber o que fazer. A moça que ficava no corredor me disse que eu não poderia usar o banheiro desse andar, e dei uma desculpa qualquer para olhar o nome completo da menina do moletom do Nirvana na lista de inscrições.

Notei, quando eu saí, que tinha um mar de pais, amigos e banquinhas de pastel na porta do prédio. E perguntei-me se a mãe ou pai ou tia ou qualquer coisa da 37 estava lá. Bom, tanto fazia, não é? Procurei um lugar com sombra e acendi um cigarro. Liguei pra minha mãe e pedi pra ela vir me buscar. Encontrei uma menina da minha escola e conferi as respostas com ela. Tudo isso no automático, sem perceber muito bem o que acontecia. Pra falar a verdade, eu estava mais procurando a menina com o canto dos olhos do que prestando atenção nos As, Bês ou Cês que a Giuliana falava. E minha busca não foi em vão: quase quarenta minutos depois ela parou a uns quatro metros de mim, acendeu um cigarro e puxou Praticamente Inofensiva da bolsa da Pink.

Pensei em mil coisas. Pensei em chegar perto dela e perguntar se o número da carteira era 42, numa piada idiota. Pensei em gritar “Carolina!” só para ela olhar pra mim, por um segundo que fosse. Desisti de tudo. A frase relacionada com o livro parecia pedante, gritar “Carolina” atrairia uns cinquenta olhares, no mínimo. Mas o motivo principal por eu não ter ido falar com ela era eu estar fedendo a cigarro e ter passado lápis do olho.

Um sedã preto encostou perto da calçada e ela subiu. Eu nunca mais a vi.

Mas fiquei feliz quando soube, pela lista divulgada uns meses depois, que ela passou pra segunda fase de Moda. Mesmo eu tendo sido reprovada pra Comunicação Social.
Das montanhas cheias de árvores que nevam.
Um cursor piscando. Tudo ao meu redor, de alguma forma, pisca. Não como fazem as luzes de Natal, de um modo mais parecido como o breve momento entre o fechar e o abrir dos olhos. Esse tipo de escuridão é confortável. O abraço negro do quarto na hora de se deitar; a penumbra que um vaso faz no chão. É algo breve, quase passa sem ser notado. Para ser completamente sincera, não consigo nem descrever totalmente. Em parte por ser um tanto incompreensível. Mas o que são as coisas incompreensíveis, senão apenas elementos simples que não observamos por tempo suficiente?

Talvez seja mais fácil deixar de ser tudo que eu era para me tornar algo completamente novo. Eu não sei muito bem. Acontece que qualquer promessa que eu invente é piscante também ― e eu não sei se é de jeito estável. Então o que eu faço é abrir os braços e esperar ser levada com o vento, como fumaça, como ácido, como algo volátil. Como se eu fosse outro tipo de pessoa.

Não é desespero, ou eu espero que não seja. Porque eu nunca conheci um que se assemelhasse a esse. É mais uma sutilidade gradual, algo que se alcança com o tempo, uma espécie de mantra. A diferença é que eu nunca soube muito bem qual seria o gosto desse momento: apesar de ele estar sempre presente na minha imaginação, era muito mais uma idealização platônica do que um desejo palpável. Era uma escalada, e não uma escada. E só Deus sabe como minhas mãos escorregam facilmente.

Mas agora isso chegou, e chegou de modo tão súbito e natural que não sei se eu tomo um susto ou acho irônico. Então, justamente por essa dúvida tão corroída, escolho cantar. Daquele jeito que ninguém sabe se é grito ou felicidade, como o canto dos pássaros presos em gaiolas. Eu sei, eu sei que a imagem que eu passo com tudo isso é de uma depressão isolada por montanhas altas sem lago nenhum por perto para fazer a paisagem bonita. Mas não é bem assim. É só a futilidade dos sentimentos e a falta de cotidianidade que me incomodam. A sensação em si não é nada desagradável.

Outro dia eu vi flores nevarem em plena primavera. Apesar desse calor insuportável que vem fazendo em São Paulo, os pequenos flocos amarelos caíam com frequência tão regular que eu poderia deitar no chão pintado de laranja e fazer um grande boneco de flores. Ou um buquê de mortes. E entenda: era bonito, mas tão incrivelmente bonito, que a tristeza da queda inimaginavelmente sumiu, evaporou, se apagou, e ficou só isso: flores. neve. concreto. sol. e um pouquinho de vento ao fundo.

Talvez a minha vida agora seja assim também.

E isso não é, de modo algum, uma reclamação.


Tudo seria mais bonito se estivéssemos em Berlim. 
Você vê essas árvores, meu amor? Nativas, pelo que eu ouvi dizer. Eu já passei tantas vezes por essa praça que até me esqueço de colher as pitangas que às vezes caem no chão avermelhado. Em incontáveis ocasiões eu me fiz jurar que iria esquecer que já sou quase adulta e trepar na pitangueira para relembrar a infância. E não vou mentir: oportunidades não faltaram. Dizem que eu amadureci, e que não preciso mais pensar muito para saber o que é certo. Mas disso não tenho certeza. Se a realidade fosse essa, eu não estaria cumprindo as promessas tão pueris e inocentes que fiz? Ou, então, se elas fossem indóceis, eu não teria que abortá-las antes mesmo que fossem nítidas em minha mente?

Você sabia, meu querido, que as bananas são originárias da Ásia? As pessoas ficam tão surpresas ao ouvir isso! A familiaridade de um objeto o transforma em nossa pátria, ouvi dizer. O que é confortável, admito, mas não seria um pouco errôneo e ilusório? É como um estrangeirismo... Mas tão fixado em nosso vocabulário que já conquistou local permanente no dicionário. E o pior: uma palavra enraizada, disfarçada no nosso português, com "u"s ao invés de "w"s... Acho que esse tipo de máscara deveria ser considerado mais hediondo do que muita falsidade por aí. Sabe, os nossos macacos já são eternizados pela imagem de se alimentarem de bananas. Mas a banana veio de tão longe...

Digo, você vê aonde eu quero chegar? O que você pensa sobre todas essas coisas? Você pensa sobre isso, docinho? Ou está tão afundado em sua própria rotina, em sua piscina translúcida, que não enxerga mais a superfície? 

Eu quero te contar uma porção de coisas: mergulhar é muito bom. Acho que ambos sabemos disso, não é? Porém enxergar a superfície, com clareza, enquanto nada com os peixes palhaços (carinhosamente apelidados de "Nemo") é incrivelmente mais delicioso. Seja a sua realidade uma piscininha de plástico ou o mais profundo dos mares. 

Envolta no sal do mar de mim, posso começar a apreciar o gosto de comida para diabéticos. Entende?

É claro que é preciso engolir muito cloro pra entender que as pitangas que eu não colhi naquele dia ensolarado me fariam (e farão!) falta. É necessário quase se afogar em agonia para pensar em bananas como algo surreal e desconhecido. Para ver o mundo sem óculos, você tem que ter passado muito tempo nadando junto aos tubarões, seja enjaulado ou não, sem ter ao menos um par de pés de pato.

Mesmo expondo tudo isso, não pretendo de modo algum afirmar que olho para mim mesma como olho para um espelho. O mundo não é meramente físico. Pelo menos, o mundo interno nunca o foi. E lhe digo mais: é preciso desconfiar. É preciso estranhar cada detalhe do que vemos na televisão, ou no teatro de improviso no meio da rua. A dança! As cores! Tudo isso veio de tão longe, e é tão contrário a selvageria dessa nossa pátria, desse nosso sabor, que me deixa tonta. Deveria te deixar tonto também, sabe? Mas eu tenho tanto medo, eu tenho um pavor extremo de que você não entenda do que eu estou falando. O pior cego nunca foi aquele que não quer ver. A pior espécie de cegueira é aquela em que não se acredita nem ao menos que há uma alternativa.

E existe a chance, meu amor, de pensar. No meio dos hemisférios sul e norte da nossa alma, passa a tênue linha de costura. E é nessa linha que tudo é real. É nesse aglomerado de pontos que o pensado se funde com o visto, o ouvido se faz de mão, e a gente sente. Não sente a mão tocando em nossos dedos, e sim sente aquela vontade imensa de suco de pitangas. De descobrir a origem da banana. De aprender a falar francês.

Mas essas vontades quase nunca são atendidas, meu amor, e acabam por cair no esquecimento. É por isso que a minha vontade é que o visto se torne o sentido. Minha vontade é que a desconfiança nasça do próprio globo ocular. Eu queria mesmo acreditar que para isso não é preciso mudar drasticamente. Vê, não é só indo pra China que se aprende mandarim. Mas, de algum modo, eu penso que seria muito mais poético aprender por lá do que por aqui.

As coisas seriam mais fáceis se não tivéssemos que escolher entre a dúvida e a sabedoria.

Engenharia terrestre
por que parar
pra pensar
se a pá
cava sem parar?
e parando
alguém cai
no centro da terra
sem o aviso
de
“Estamos em construção”

mas se no manto
é tudo quente
que nem manta
no inverno
no inferno
da Rússia
deveria-se
parar
para pensar
por quê.

Confissão regada a fluoxetina
enjôo
e tontura
nessa fila
onde as pessoas escolhem se querer morrer de câncer ou de sífilis
a espera pela cura ou pela morte
é mais difícil do que parece

passando mal de fome
sem apetite nenhum
ouvindo músicas agressivas
só pra ver se essa moleza no coração passa

estou ficando doente
e não quero pagar pra ver
a enfermidade se espalhar por meu corpo

a morte vem de qualquer jeito
a questão é: viver de desesperança
ou de
incansável espera?

câncer ou sífilis
os atendentes perguntam
como se o deus deles fosse os perdoar
por aterrorizar mortes de pessoas

e a vida tem diferentes usos, não é?
então por que eu sinto medo de explicar como vivo?
se eu esperava que tudo passasse
com o tempo?
bem, é claro
a questão é que os anos se estendem
e os sentimentos também

no escuro vou me erguer
pensando na minha casa de infância
nas brincadeiras que foram enterradas lá
mas eu nem me lembro
mais
dos nomes dos meus colegas de travessuras

parece tão perto da morte
esse sentimento de podridão
no escuro vou chorar
pensando em todas as oportunidades que estão sendo
desperdiçadas

dormir nua
pensando em como eu queria
recomeçar minha vida num lugar mais bonito
com algumas margaridas, talvez
e quem sabe eles conheçam O Apanhador no Campo de Centeio

ana, ai, ana
não, não volta!
sua companhia é melhor que a solidão
mas estou enjoando
da sensação que fica quando você vem

mas de manhã eu me esqueço
e você sempre volta
como um suspiro entrecortado
como um parque de diversões pegando fogo

eu sei que há mais que isso
ah, há de haver algo
mas é tudo um bumerangue
e não é daqueles bonitos, não
e sem cachorro para pegar o frisbe
fica difícil se divertir
Sobre três semanas de controle. 
toda vez que entro no banho
é sempre a mesma coisa
toda vez que entro no banho
sinto a água correr quente pelo meu corpo
meu pescoço meus peitos meu braço direito
e sinto falta
das calmarias arrancadas e massacradas
de outros tempos. 

eu entro no banho
e sinto aquele líquido quente
acendo um cigarro meio não me preocupando
se vai molhar
porque no fim sempre molha
e sinto falta
do tempo em que
eu comia
o sangue.

Soneto para a Alma. 
me perdi num campo
onde não haviam margaridas
havia uma árvore 
somente uma, alta, bonita e incurável

incurável era, decerto. mas trazia frutos
frutos das coisas que me ensinava
que a fome não era certa se havia o que comer
e que o branco não era eterno, seja como for

foi assim, então, que montei uma casa
na árvore.
longe de todo o mal do mundo

e lá em cima, era abrigo
mesmo que as flores murchassem
ela me levou pro campo de centeio.

Canção do amor insolente e cheio de cócegas.
e o sangue doía pra correr
as veias infectadas de veneno
mas com música agradável
Beethoven tocando seu piano
e todos param por alguns segundos
pra apreciar a musica
e eu só quero escrever poemas de amor
que me preencheram a alma
e vender por 52 centavos

você não é de plástico como as outras por aí
e de pensar que no começo você era só uma incógnita
e que eu talvez nunca fosse te conhecer...
perde todo o sentido do mundo
mas é como se eu tivesse fazendo tudo errado
e que minhas mãos caleadas ainda aguentam seu peso por muito tempo

e o tempo passa muito rápido
e o tempo passa muito devagar
e quero só ter esperanças
e pensar que tudo dará certo
como cada panela tem a sua tampa
porque a marca que você deixou em mim é eterna
o cheiro forte e acre que você deixou nunca vai sair de mim
vamos ter álbuns de fotos em família juntas
vamos dominar o mundo com nossa paixão
que tudo deixará de ser nefasto e ficará
bonito
e
agradável
e as caixas que nós preenchemos
serão mais cheias que todas as outras

ser louco parece impossível
ser sóbrio parece mais fantástico que a minha própria existência
sua presença na minha vida é ardente e perfumada
você me dá vontade de dançar
toda vez que te vejo tenho vontade de dançar
você cura a minha gripe a, a minha ferina e eterna gripe
você cura o mais importante e que as outras pessoas só pioram
com você os cigarros são mais prazerosos
as bebidas são mais fortes
e as músicas ficavam mais fáceis na partitura do meu piano
e as músicas que eu escuto fazem mais sentido


eu não existo eu não existo
tudo que existe é você
o que basta é você
e a minha culpa em ser o que sou

e ainda assim tudo que eu sinto
é que seu cabelo encaracolado no fogo
me faz cair mais e sentir as ondas
e os sorrisos dos estranhos

é uma coisa que eu sinto: que posso expressar pra todo mundo
o que eu sinto por você
com solos de piano aos fundos
e cigarros na boca de estranhos
amor só de am
sem or
cor
dor

você consegue me ouvir?
eu não quero conhecer você hoje
mas eu já conheço

mas o cigarro acabou
as balas de menta são mais fortes com você
então tudo bem

Do cheiro de isqueiro.
Conheci uma menina tão bonita que quis colocar em exposição. Dentro de um vidro, para ninguém danificar, mas vidro claro e lúcido, para todos verem. Será que foi algo que eu fiz, algo que eu comi? Não sei responder por quê, mas ela me faz ver as coisas amareladas, como dentes de vampiro cheios de sangue se fechando e não prejudicando ninguém. Olhos cheios d’água, estômago vazio, e eu estou com ela. Cantando músicas e dançando com um cigarro meio colado na boca, que eu não trago muito, mas fumo afinal. Ver o mundo como quem me vê. Eu digo o tempo inteiro, que gosto dela, mas não sou dela. Ela sabe que é como uma roda gigante, e estamos no topo. Ela sempre teve alma de pássaro e pousava nas mais belas árvores. E veio parar em cima do meu telhado, imagine! Como é que se alimenta um pássaro com chocolate e cigarros? Tenho medo de tudo que eu tenho para oferecer seja apenas um pequena partícula do que o mundo pode dar. Mas, afinal, ela pode ir embora quando quiser, e leva o chocolate junto que sem ela não faz mais sentido. 

Bjönd.
você piscava
como um peixe sem isca
na ânsia de quem belisca
sem querer machucar

você sorria, de flores
em seu corpo de infinitos e desorganizados bordados
ah, larissa, seja a única
a ter em si meus pecados

tudo bem se doer?
porque vai machucar
mas quem sabe você ache no pus
um sol, uma neblina e um lar

tenho ferina nas pernas
tenho ânsias eternas
tenho medos, vômitos e dobras
mas não tenho a quem amar, ah, larissa!

minha querida pequena,
desejo que você se ache nesses versos
que exista neles seus desejos imersos
eu não sou Caio Fernando Abreu...

mas desejo
que seja doce
que seja podre mas que você queira continuar
que seja perpétuo enquanto durar
será, loira, que posso dormir aqui?

porque enquanto o despertador não toca
eu tenho você
mesmo que só enquanto eu dormir
mesmo que com rimas feias de um Poema torto
mesmo que por um instante quando você reler minhas confissões cheias de café, açúcar e carinho...
açúcar sem café, tronco sem folhas...

bjönd
acredita em mim hoje
creia nesse poema
nele, só nele!
porque o resto vai embora
como eu fui, minha loira
Sobre minha melhor amiga e eu na Avenida Paulista.

Querida Olga...

Se eu fosse uma tinta, seria azul escuro. Não tão azul quanto o céu e num tom afastado do breu da noite... Eu seria cor de menta, tão azul e fantasmagórica quanto à dor da sua existência. E eu lhe cobriria o corpo miúdo de mim para você deixar de ser ouro. Porque a cobiça lhe derrete antes do fogo... Se você fosse tinta, e não dura, nós transaríamos num frenesi autêntico misturando nossas essências em suor e formando uma nova escala de cor que alguém um dia nomearia com aqueles substantivos estranhos que jogam em cima de tons assim. Roxo gato, se você fosse vermelha, verde joaninha, se fosse amarela. Acontece que não era nada disso: era ouro. E era tão valiosa que eu perdia o tesão perto de você...  

Eu ia a um bar qualquer e pedia um uísque. Olhavam-me torto, como quem pergunta se deve ou não dar prazer a alguém tão miúda e perdida como eu. Então eu acendia um cigarro, e como que por tabela, me traziam a bebida. E ficava ali, pensando em nada, num blecaute enorme, acho que num kamikaze vicioso que às vezes parava de ponta cabeça, para o meu desespero, e eu só conseguia ter uma imagem na minha mente: as meninas que você rejeitou.

Isso não é conto para essa pulseira, entretanto. Venho falando de nós. Dentro de mim pulsa um rim no lugar do coração, um osso onde deveria articular e há cílios em meus lábios. Presumo que nasci assim, toda certamente errada, e, se você não tinha habilidade para me operar, ao menos arrancava os finos pelos de minha boca com uma pinça, deixando tudo meio douradinho, como sombra da sua existência. E eu agradecia, beijava-te os dedos e comia com você algum petisco duvidável.

Certa vez, perdi o controle e decidi lhe querer.

Minha visão estava embaçada e eu ria histericamente. Você dançava, enrolei meus braços no seu pescoço e resolvi que lhe queria. Fiquei pensando assim: é tão minha que tem que ser minha menina. Já que não era, você virou o rosto e eu ri em desespero, porque é o que eu poderia fazer. Ficou esquecido esse episódio, e eu nunca mais me atrevi a lhe querer. Repetitivo assim: quero queria. E não quererei. Até porque, lhe vendo assim como você é, tão bonita e perturbada, eu sei que não cabe no meu bolso apertado cheio de cigarros e isqueiros.

Não interessa portanto meus distúrbios de relação com você, vim falar de mim. Tinta azul. Que venho pintando a Avenida Paulista inteira, por cima daqueles dizeres que pareciam racistas e que rimos sobre eles juntos. Por cima das nossas fotos, por cima dos cigarros que você me deu. Venho traçando essa linha que como uma doença avança sobre mim  e me deixa desesperada, gritando: “Olga! Ô, Olga...”.

E seu nome foi assim invadindo o dia a dia de cada paulista que te via passar no metrô, andando meio irregular, segurando os seus pertences apertados contra o peito, com medo de um assalto. Mal sabe que o assalto seria de você mesma, lhe roubarem do mundo para fazer jóias. Não importa se acham que é mais bonito em forma de coração. O coração, puro, é ouro. O coração, inteiro, é você, Olga.

 E tudo bem se você achar que ouro e prata combinam. Tudo bem você gostar de marfim. Mas quero que você pense também às vezes em pintar a casa, e, (peço em mísera esperança crua), que seja de azul.